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MANÉ PEREIRA, o homem que conversava sozinho

(por: Geraldo Ananias Pinheiro)  gananiaspinheiro@gmail.com.br

                        Algumas fotos tiradas recentemente do sopé da Serra do Araripe, sítio Almécegas, município do Crato-CE, onde viveu Mané Pereira na década de “60” do século XX, personagem principal do conto. 

serra_do_araripe

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                        Faz muito tempo, mais de meio século. Havia lá na roça, no interior do Ceará, um homem conhecido por Mané Pereira. Negro, estatura mediana, magro, cabelos pixains, dentes escuros em decorrência dos anos como fumante de cigarro brabo, feito do fumo de Arapiraca. Naquela época, não devia ter quarenta anos, mas aparentava mais de sessenta, ante o peso da difícil vida da roça, que o transformara numa pessoa de aparência debilitada e doente. Era de causar dó a qualquer um que o visse, não só com relação ao aspecto físico, mas também ao mental. No primeiro caso, por ser uma pessoa sofrida, rosto triste, olhar piedoso, pele enrugada e queimada pelo sol; mãos calejadas de tanto puxar o cabo da enxada, no preparo da terra para o cultivo; no da roçadeira, brocando o mato para o plantio; e no do machado, rachando lenha. No segundo aspecto, por ter características de pessoa perturbada. Era inquieto, agoniado, e ficava o tempo todo conversando só. Por isso, pessoas sem coração o chamavam impiedosamente de “Abirobado”.

sitio_almécegas

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                        Trabalhava de sol a sol, de domingo a domingo, por alguns trocados apenas, um prato de comida e um lugar para dormir. Morava na velha “casa de farinha” do sítio; dormia praticamente ao relento, numa surrada rede, armada entre duas vigas de madeira de sustentação da cobertura dessa “fábrica” de transformar mandioca em farinha. Quando chovia à noite, além de se molhar devido às enormes goteiras nas telhas da cobertura, costumava ter companhia: alguns cães vira-latas entravam naquele local para se protegerem um pouco da chuva e do frio. Mesmo assim, ele não reclamava da vida!

névoa_no_araripe

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                        Era sozinho no mundo. Não tinha, sequer, notícias da existência de qualquer parente. Por sofrer de algum tipo de problema mental, desconfiava-se que a família dele fosse de fora e o tivesse abandonado naquela região quando ainda jovem. Desconhecia a sua vida pregressa. Não tinha ideia de quando nascera, onde e, sequer, quem seriam seus pais. Devido à doença mental, quando não havia alguém por perto, ficava o tempo todo conversando sozinho, e em voz alta, simulando dialogar com alguém. Mas não passava de um monólogo muito estranho: ora fazia perguntas, ora respondia as suas próprias indagações. O que chamava a atenção era o fato de que, nessas elucubrações, citava sempre o nome de uma mulher por quem demonstrava uma grande paixão, a Toinheira, a única “interlocutora” em suas intermináveis conversas. Seria realmente a mulher de seus encantos, lembrança viva da poeira do tempo e que se encontrava ainda presente na sua memória? Ou seria simplesmente fantasia? Afinal, há quem diga que “os loucos também amam.”

almécegas

almécegas

                          Os assuntos por ele escolhidos para os “diálogos” que, no seu entender, mantinha frequentemente com sua amada pareciam, quase sempre, fazer-lhe bem, pois o levavam a momentos de felicidade. Gesticulava muito, dando sonoras gargalhadas. Nessas horas, pronunciava palavras amorosas, dizendo, paradoxalmente, ser um homem feliz por viver de saudades e das doces lembranças guardadas nas páginas do coração. Às vezes, porém, se aborrecia,ficava bravo, “quebrava o pau” com Toinheira. Alterava a voz, nervoso e até trêmulo quando dizia sentir-se desprezado por esse amor. Real ou ficcional?  Ninguém sabe. Irritava-se, brigava, e até a ameaçava. Mas era coisa momentânea, logo procurava a reconciliação. Arrependia-se em pouco tempo das grosserias supostamente feitas à amada. Pedia-lhe perdão e, invariavelmente, era atendido, uma vez que ele mesmo se colocava no lugar dela para conceder tal indulto. Pedia ele: “Toinheira, vosmecê me perdoe. Tava cum muita raiva e disse coisa ruim.”  E ele mesmo respondia como se fosse ela: “ Tá perdoado, meu nego veio. Num fico cum raiva de tu não.”

mirante_do_sitio_almécegas

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                         Dava pena, e até medo, vê-lo assim. Era tudo muito real, e o sofrimento por ele incorporado naqueles instantes tocava profundamente a todos que presenciassem tais cenas.  Afinal, falava de saudades de um amor perdido, talvez, e de uma paixão ardente e arrebatadora que nem a aparente doença ou perturbações outras conseguiram apagar de sua alma.Falava, enfim, de coisas do coração que facilmente emocionam qualquer pessoa. Doía muito observar que, quando citava o nome da amada, fazia um gesto de reverência: pegava na aba do chapéu velho de palha, cheio de manchas pretas de suor, olhava para o céu e, com a mão direita, o retirava um pouco da cabeça numa atitude de grande respeito e profunda saudade. Respirara fundo e dizia o nome dela duas vezes seguidas, assim: “Toinheira, minha Toinheira…”

cactos_na_serra_do_araripe

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                         Usava roupas surradas e cheias de remendos — mas sempre limpinhas. Ele mesmo as lavava.  Antes de dormir, preocupava-se também em tomar banho todos os dias na nascente, a fim de ficar cheiroso para os alegados encontros noturnos com sua amada que, em sonhos, viria para o aconchego de seus braços, na velha “casa de farinha”, fincada no sopé da Serra do Araripe, tendo como companhia a encantadora lua prateada clareando a escuridão da terra e embelezando a alma de quem ama verdadeiramente.

alto_da_serra_do_araripe

alto_da_serra_do_araripe

                        Toda vez que se encontrava na frente de pessoas, ou notava que alguém o observava, ficava incomodado, calado, pensativo, com um olhar triste e piedoso sempre voltado para os chinelos que calçava, tipo “currulepes”. Se lhe perguntassem algo, respondia humildemente em poucas palavras, com a voz mansa, encabulada e medrosa, externando sempre um semblante de submissão, retrato de uma vida vazia e cruel, porém rica de sentimentos da alma.

                         O único amigo que tinha era o “Veludo”, cachorro do patrão, mas que o acompanhava a todo o momento e o escolhera como seu dono — dizem que todo animal faz essa opção. Mas não dormia na “casa de farinha” com o amigo humano porque ficava preso a uma corda na varanda do casarão, residência do proprietário do sítio.O interessante era que o cachorro tinha mania de ficar prestando atenção aos devaneios diários de Pereirinha. Enquanto este conversava só, o dócil animal, sentado no chão, o acompanhava atentamente com um olhar intenso, de orelhas em pé, como se entendesse tudo da conversa tediosa que ouvia. E quando o “diálogo” era encerrado, Seu Mané Pereira sempre tinha o hábito de passar a mão carinhosamente na cabeça do companheiro e dizer: “Vamo, Veludo. Toinheira já foi simbora”.

                        Certa vez, num domingo, ao passar pelo alpendre da casa do patrão, o rádio a pilhas tocava, a todo volume, uma música de muito sucesso àquela longínqua época. Ele parou e ficou alguns segundos imóvel, olhando para o rádio, no exato momento em que a parte da saudosa melodia dizia assim: “Quando eu morrer, no outro mundo esperarei por ti, aqui na terra, não fui feliz, o destino não quis; quando eu morrer e te deixar meu amor infiel, aqui na terra não fui feliz mas serei lá no céu.Quando eu morrer, no outro mundo esperarei por ti, aqui na terra não fui feliz, o destino não quis…”Para espanto e comoção dos que se achavam presentes no local, ele começou a chorar e a enxugar, com as costas das mãos, lágrimas que começavam a descer pelo rosto. Em seguida, saiu às pressas.

luar_no_araripe

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                        Dias depois, em época de lua cheia, correu um boato de que um cachorro doido mordera “Veludo”. Como não havia médico veterinário naquele tempo, na região, nem alguém que aplicasse vacina antirrábica nos cães, a única saída para casos assim seria sacrificar o animal, e da forma mais cruel. Amarrava-o numa estaca, dava-lhe um tiro de bacamarte nas costelas e terminava de matá-lo aplicando-lhe pauladas. Coisa horrível de se ver, e até de contar. Depois deixava o corpo inerte do bichinho ao relento para que fosse devorado pelos urubus. Cachorro não tinha o direito, sequer, de ser enterrado.

araripe

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                         Numa tarde de um dia qualquer da semana, “Veludo” começou a babar muito. Segundo a crença, era o sinal de que teria ficado louco. Imediatamente, mandaram chamar Pereirinha para fazer o serviço. Assim que chegou ao alpendre da casa, o patrão foi logo dizendo: “Pereirinha, tome esse bacamarte aqui, já está bem carregado, e essa tora de pau para você ir matar ‘Veludo’ lá em cima, perto daquele pé de jatobá grande, que fica logo na entrada da roça. Mate ele bem matado e deixa lá para os urubus comer.” O coração do coitado do morador disparou, e os olhos encheram-se de lágrimas. Como mataria o seu único amigo e, pior ainda, sob a alegação de que estaria acometido de “raiva”, isto é, louco, se o próprio Pereirinha era também considerado doido?Mas não tinha escolha. Se dissesse não ao patrão, além de não evitar que outro fizesse o trabalho, poderia ser entendido como uma desfeita de consequência imprevisível para ele.

jatoba_no_araripe

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                          Pegou a arma, o cacete de madeira — uma estaca de aroeira — e, agoniado e em desespero, saiu puxando o cachorro em direção ao local onde este seria executado. Enquanto caminhava, “Veludo” ficava o tempo todo abraçando as pernas do amigo, tentando lambê-las, como se estivesse se despedindo. O Pereirinha, por sua vez, com os olhos cheios de lágrimas de dó do animal, começava um “diálogo” nervoso. Gaguejando muito, perguntava, e ele mesmo respondia a suas indagações: “Toinheira, me ajude. Tô numa enrascada da gota. Num posso desobedecer a ordem do patrão, e não tenho coragem de matar meu amigo. O que faço, pelo amor de Deus?” Em seguida, ele mesmo respondia: “Pereirinha, tu tem que ser forte e cumprir a ordem do patrão.” Nesse dilema, subiu a serra até chegar ao ponto indicado para o serviço. Amarrou “Veludo” no pé de Jatobá, engatilhou o bacamarte, mirou-o, mas o dedo polegar começou a tremer, sem força para puxar o gatilho. Naquele instante, o cachorro, pressentindo que o seu momento chegava, e mesmo sem entender o motivo de seu sacrifício, ajoelhou-se nas duas patas dianteiras e ficou olhando para o seu possível algoz. Abriu e fechou os olhos vários vezes, deixando escorrer lágrimas pelo rosto. Pereirinha, uma vez mais, apelou para Toinheira, pedindo para que ela fizesse algo por ele naquele difícil momento. E nada de ajuda. Ele então mirou novamente a arma nas costelas do cão, o quando começava a mexer no gatilho para que ocorresse o disparo, “Veludo”, repentinamente, se assustou e ficou de pé,como se tivesse aparecido alguém. Começou a chorar e a soltar gemidos estranhos. Quando o tiro estava quase sendo disparado, Pereirinha começou a notar algo estranho e estarrecedor. Como num sonho, numa miragem, via Toinheira chegando devagarzinho e abraçando “Veludo”. De repente, por uma fração de segundo, ela abria os braços e, em atitude contrária àquilo que teria recomendado pouco antes, sinalizava com as duas mãos para que ele parasse, não executasse o animal. Rapidamente, Pereirinha jogou o bacamarte no chão, desamarrou “Veludo”, colocou-o nos braços e, a passos largos e rápidos, tomou a vereda que dava para o local mais fechado da Floresta do Araripe, e sumiu mata adentro.

pedreira_na_chapada_do_araripe

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                        Ninguém nunca mais teve notícia de Pereirinha nem de “Veludo”. Anos depois, porém, diziam que, em época de lua cheia, à meia-noite, ouviam-se conversas e latidos na casa de farinha. Quando se chegava ao local para tentar fazer a constatação da presença de alguém ou de algum animal, tudo era silêncio. Ouvia-se apenas a assobio do vento frio que, gemendo de saudades dos dois inseparáveis amigos, passava velozmente pela “casa de farinha” tomando o rumo da floresta. 

luar

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                Texto da autoria de  Geraldo Ananias Pinheiro,  autor de vários textos (publicados em blogs e coletâneas) e dos seguintes livros:

1)    Foi Assim… (contos e crônicas, Editora Thesaurus 2006)

2)    Réstias do Tempo (contos e crônicas, Editora Thesaurus 2008)

3)    Levado ao Vento (romance, Editora Thesaurus 2010)

4)    Nos Ombros do Destino (romance, Editora Thesaurus 2012)

5)    A Força de um Mistério (lançamento — romance, Editora Thesaurus 2014)